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É preciso abrir os olhos, acordar e realizar

Dois poemas de Neide Sigaúque

Aqui não dá para dormir, quanto mais para sonhar

Sou a Neide Sigaúque,
mulher,
oriunda do leito 
Austral do terceiro mundo,
Moçambique, terra de boa gente.
Nasci num país independente.
Independente da luta de libertação dos meus pais,
mas dependente de ajuda externa do ocidente.
Um país com economia pendente da dívida externa,
vulnerável aos choques externos e da pobreza extrema.

Disse um poeta:
“Aqui não dá para dormir quanto mais para sonhar.”
Essas foram também as palavras do meu falecido pai.
Enfermeiro,
salvou vidas que jaziam entre os cantos do Hospital Central.
Ele vivia reclamando que os enfermeiros recebem mal,
condição de trabalho deploráveis e que sempre faltava medicação
é que esta dependia de doação que às vezes vinha e às vezes não,
Talvez devia pensar noutra profissão,
os fundos nos sectores públicos são instáveis
dependem de doações, não dão para planificação.
Ninguem toma responsabilidade, tem pouca capacitação.

Minha mãe viúva
sonhou ver sua filha singrar
ser doutora e a minha família se orgulhar.
Endividou-se, disposta a tudo sacrificar.
Mas hoje, somam anos que ela morreu sem ver seu sonho se realizar.

Suas dividas cabem a mim pagar.
Aqui não dá para dormir quanto mais para sonhar.
Tanto queria que eu fosse diferente dela,
que cedo teve de se casar,
deixar de estudar,
sua familia formar
do lar cuidar,
como dita a tradição.
Mas eu sabia que este não era o meu lugar,
Lugar da mulher é onde ela quer estar.
E eu sabia onde queria estar, mas não como lá chegar.
Cresci com os tios que me deram a mão,
dormia e revirava sobre o colchão.
Porque aqui é difícil dormir quanto mais sonhar.
Tive sorte de ter acesso a educação
Digo sorte, porque uns têm e outros não.
E graças aos livros comprados pelos fundos de doação
aprendi a ler, contar e escrever o meu futuro,
que agora está na minha mão.

Aos 17 terminei o secundário,
aos 22 o universitário
Engrenar no mercado de emprego, era o próximo itinerário.
Era tudo quanto imaginário
Porque bati portas e tudo o que ouvia era não.
A formação não servia, diziam,
o diploma era em vão.
A estrutura da economia é assim,
não tem espaço para todos, mas conseguiria uma colocação
se tivesse uns 50 mil na mão.

Aos 23 já tinha percebido que é difícil encontrar emprego
e me sustentar.
Tornei-me vendedora informal
a saída de vários jovens que apesar dos diplomas veem as portas se fecharem.
Vendi pão e badjia com muita motivação.
No final do mês, compro o pão
mas é difícil poupar,
crescer o negócio e torná-lo formal.
Até gostaria de pagar imposto, contribuir e ajudar o país
mas para jovens existe um problema estrutural,
somos demais para o mercado laboral,
o mesmo não pode nos absorver
e para investir em nós não tem espaço fiscal.
Mesmo assim, dizem que é um país com potencial
Aqui até o sonho até dos mais fortes vira irreal.

Hoje, independente, sem apoio de ninguém,
continuo a sonhar.
Mas percebi que é preciso despertar.
Porque aqui não dá para dormir, quanto mais para sonhar.
É preciso juntar as forças, abrir os olhos, acordar e realizar.


Poetizar para revolucionar

Sou poeta.
Perdão,
Sou poeta mas não sei escrever
como os sabichões
Luís Vaz de Camões,
Declarações de amor,
mas eu escrevo declarações de paz,
cartas de intervenção para ressuscitar
Mandela, Mahatma Gandhi, Martin Luther King, Che Guevara, Malcon X e outros
intelectuais, reflexões sobre os tempos actuais.

Não falo muito do amor, falo mais do ódio
pelo mundo ter dominado e hoje poucos sabem amar. Escrevo
para massacrar o sistema,
denunciar esquemas
falar da corrupção, fome, pobreza racismo, terrorismo e outros extremismos.

A vida já é dura
e ainda falas de sofrimento?
Poesia não é só dor.
Fale mais do romantismo e do amor.
Perfumar o corpo e esconder o odor?
escrever a beleza do mar, estes mares vazios que enchem de lágrimas? Palestina,
Ucrania e cabo delgado estão a sangrar consegues enxergar? Vamos fingir que há
paz?
Tapar o sol com a peneira?

Eu podia escrever sobre o céu azul nesses tempos chuvosos nebulosos
mas não consigo sorrir em meio a tantos choros
ser fria quando o mundo está em chama.
A voz do sofrimento clama.
Horrores e terrores
E eu, poeta, vou falar de flores?
Poesia não é invenção
é a inspiração em histórias reais, experiências vividas.
Poesia é o dia a dia.
E se não for para reivindicar, se libertar e revolucionar então porque poetizar?

Não sei eacrever para fascinar
Eu escrevo para pregar o ABC da empatia
Para que juntos possamos ler o mundo e perceber
Que na matemática da vida 1+1 não é igual a dois
Porque todos juntos somos 1 um só
um só corpo, um só mundo.

Perdão eu sou poeta mas não sei romantizar e ignorar
A dor da mulher violada, a criança que sente fome, o egoísmo que nos consome, o
adolescente deprimido, o cidadão reprimido, o jovem desempregado, as balas que
tem matado, o negro assassinato, o crime exacerbado.
Eu não consigo.

Eu sou poeta porque Deus escreveu que em mim
A poesia deve habitar
Para ser a voz do mundo mudo que até o surdo pode ouvir e o cego pode ver.
E quem inventou que a pá é mais pesada que a caneta, desconhece o peso da caneta
de um poeta 
Neide Sigaúque

 

Neide Sigaúque é estudante do último ano de Filosofia na Universidade Eduardo Mondlane, poeta, declamadora, repórter, apresentadora, slammer, voluntária para o desenvolvimento comunitário e ativista social para os direitos humanos e direitos da mulher. Em Maio de 2024, Neide Sigaúque representou Moçambique no Campeonato Mundial de Poesia Falada em Paris, França e novamente no Campeonato Africano de Poesia, onde ficou em 5º lugar, sendo uma das 10 Campeãs Africanas de Poesia Falada qualificadas e seleccionadas para representar África no Campeonato Mundial de Poesia no Togo em Novembro de 2024.

As opiniões expressas neste artigo são da responsabilidade dos autores e não reflectem necessariamente as opiniões do Instituto ou da Universidade das Nações Unidas, nem dos doadores dos programas/projectos.